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Foto do escritorCristiano Chaussard

19 - Nas mãos de Shiva

13 de mais de 2020 2h48 da manhã, hospital infantil Joana de Gusmão, pelo Papai



Temos uma piadinha interna que é evitar falar somente em Deus. Falar das mãos de shiva fica engraçadinho porque esta deusa tem mãos em excesso.


O motivo do sarcasmo se dá por tudo o que já relatei em relação ao nosso não conformismo, mas também por saber que inevitavelmente nosso Theo será inserido em um mundo cheio de crenças e mitos e que queremos que orientá-lo nessa jornada abrindo-lhe a visão.

Assim falar de outros Deuses pode mostrar que não há um só caminho certo, ou mesmo que não existe um certo mas que todos são válidos.


Certo de que vamos assumir uma luta pelo resultado de crescimento proporcionado pela nutrição hipercalórica, seja gentil ou forçada, convenci a Suelen de que precisamos novamente de ajuda psiquiátrica.


Foi assim que acabamos marcando para mesma data e horário a Psiquiatra e a Pediatra do Theo. E eu queria muito estar nos dois lugares, mas não fiz drama e levei o Theo sozinho para a Pediatra Geral.

Pelas normas impostas para precaução à contaminação pelo COVID-19, somente um acompanhante pode estar na consulta. Da vez anterior foi a Suelen e desta vez fui eu.


Talvez por ter estranhado estar somente com um de nós pela primeira e pela segunda vez depois de tantas consultas com pai e mãe presentes e atentos o Theo não parou de chorar desesperadamente nas duas últimas consultas e desenvolveu claramente uma resistência ao ambiente da clínica. É injusto, mas acontece. Paciência.



Botamos o pé na recepção para cadastros de entrada, o Theo soltou o berreiro. Botei o pé pra fora ele parou imediatamente. E assim foi por três vezes, até que não havia mais como sair, era a hora da consulta.

Foi uma consulta conturbada. Difícil de se comunicar abaixo de berreiro, mesmo com recursos “extremos” de vídeo no celular. A Suelen já tinha passado pelo mesmo problema uma semana antes com a nefro-pediatra.


Medições feitas, o Theo cresceu um pouquinho, ganhou perímetro cefálico, mas perdeu peso. Confesso que naquele momento minha ignorância me dizia que isso não era um grande problema, afinal de contas, tantos bebês já passaram por isso e estão aí.



O caso do Theo era diferente. O estômago estava claramente "sufocado" e espremido pelo tamanho dos rins como pode ser percebido no vídeo acima de pura fofura e rins aumentados.

Em vez de mamar 120ml como qualquer bebê de 7 meses ele não passava de 50ml. Nós já havíamos atentado para essa condição, então estávamos alimentando ele o tempo todo para compensar.


Na mesma consulta a pediatra ainda apontou um barulho na respiração dele como sendo uma dificuldade de respirar causada pela falta de espaço no tórax também. A mesma característica pode ser percebida no vídeo que mostra o tórax em esforço para compensar a falta de espaço.


O restante da consulta foi uma lamentável recomendação para que procurássemos ter uma crença e a "prescrição" de uma guru preferida da doutrina espírita, para nos consolar e confortar lutando com a "muito objetiva" ferramenta da fé.


O recado dado foi claríssimo, dito com essas palavras: "agora vocês estão nas mãos de Deus". E eu pergunto ao leitor: já não estávamos? No meu conceito de graça o Deus que prefiro chamar de Natureza, permeia tudo. Assim sempre estamos nas mãos dele e não somente no momento do desespero.


Saí da consulta perplexo. Não podia crer que nossas opções objetivas haviam acabado. Nosso Theo não estava crescendo, perdeu somente 400 gramas, mas estava feliz, sorridente, esperto, carinhoso, desenvolvendo-se em tudo, exceto no peso.

Aquela reação e recomendação me pareceriam completamente despropositadas. Havia de termos outras opções científicas dentro da objetividade da ciência, recorrendo-se ou não a qualquer fé.

Eu preferia passar então a colocar-nos nas mãos da ciência contra o desengano. E foi o que fiz.

Liguei o modo trator e comecei a atropelar.


Busquei a Suelen no Psiquiatra 50 minutos depois de iniciar a fatídica consulta. Percebi que apesar de ela ter relatado uma ansiedade física com falta de ar na saída da consulta psiquiátrica, demos um passo consistente que fez muito bem para ela. Ela parecia segura e determinada a enfrentar e atropelar como um trator qualquer objeção que causasse seu caminho. Estavámos os dois assim.


A última vez que eu havia visto ela com esse nível de determinação havia sido na ocasião do concurso para ocupar o cargo que conquistou na prefeitura, ocasião em que motivada pela rivalidade para com uma pessoa em específico, ela superou todas as expectativas e passou como primeira colocada no concurso. Este era o nível da determinação que ao longo dos próximos dias ficava cada vez mais claro e firme.


Não era assim, tão claro nos 10 minutos depois da consulta, mas já dava pra sentir grande diferença na pessoa que entrou e na que saiu daquele consultório.


Foi motivado pela indignação que fiquei pela recém realizada consulta que vou aqui chamar de consulta do desengano e pela ainda incerteza da fortaleza da qual estava se tornando o Trator-Suelen, que decidi entrar em contato com a nefropediatra e marcar uma consulta sozinho com ela. Sem o Theo e sem a Suelen. Eu precisava de ferramentas e não queria que a Suelen fosse assustada caso as ferramentas fossem drásticas.


Mas eu precisava saber que recursos a humanidade havia deixado como herança científica para o nosso caso.

Organizei meus motivos, dúvidas e exigências em tópicos, revisei com minha prima médica, na insegurança de estar fazendo a coisa certa ou exagerando, e fui, logo no dia seguinte.


Muito bem recebido e acolhido como sempre relatei a doutora a situação preocupante e pedi para voltarmos a ter a mesma conduta da nossa primeira consulta com ela. Explico: Na ocasião da véspera do improvável nascimento do Theo, alguns dias antes, eu havia solicitado ao obstetra o contato de um especialista no caso do Theo. Na incerteza estatística de que ele teria 2% de chance de nascer, meu maior temor era de que ele sobrevivesse em uma vida miserável, sem plenitude e no limbo. Naquela ocasião, indicado pelo obstetra, fomos fazer uma consulta prévia com a melhor especialista da cidade no caso do Theo (achávamos que faltava um mês para o parto, mas o Theo decidiu nascer horas depois).

O que vimos naquela consulta foi uma profissional transparente, competente, experiente em um caso tão raro e específico que contrariou a opinião dos demais médicos que havíamos consultado anteriormente mostrando que ele nascesse com problema X poderíamos recorrer ao procedimento Y e assim por diante em cada uma das situações prováveis relatadas com muita clareza e pé no chão.


Retomar a conduta daquela primeira consulta momento era imprescindível novamente, pois se na primeira ocasião lutávamos contra o possível óbito, agora também teríamos que deixar o conformismo de lado e pesquisar as alternativas para enfrentar mais uma vez o óbito que aconteceria se nada fizéssemos.



Foi a melhor coisa que eu fiz, isso porque havia de fato ferramentas objetivas, científicas eficazes para a nutrição e o crescimento do Theo. Minha conclusão é que a consulta do desengano foi realmente um despropósito injustificável.


O recurso número zero era aquele que já havíamos começado mais brandamente há semanas, introduzindo o TCM como elemento hiper-calórico na dieta e há um dia com a maltodextrina, apesar de eu ter recém comprado antes da consulta e ainda não ter usado na dieta.



A segunda ferramenta seria a alimentação por sonda acompanhada em internação hospitalar. Uma opção pouco invasiva mas muito intensa e eficiente, uma vez que, o alimento não depende da vontade do Theo e que o espaço reduzido do seu estômago seria superado pela constância na introdução da alimentação controlada por um equipamento especializado. A 20ml por hora em 24 horas alimentaríamos com baixo risco e alta eficiência ele com uma alimentação hipercalórica numa taxa de 480 ml por dia.


A terceira ferramenta seria mais drástica e definitiva. Uma vez que a sonda é temporária e a desnutrição pode se tornar recorrente, a gastrostomia uma espécie de acesso direto ao estômago sem passar pela boca e garganta, seria a opção para facilitar a nutrição no dia a dia. Um recurso cyborg, mas muito eficiente.


Fiquei muito seguro com essas duas ferramentas, mas havia mais duas.


Mais drásticas e arriscadas, mas mais definitivas também. Seriam elas a retirada dos rins para dar espaço para o estômago com hemodiálise até ele crescer o suficiente para um transplante e a última ferramenta um transplante precoce.


Para as duas últimas a recomendação foi realizar o procedimento no exterior. E eu comecei a pesquisar imediatamente as possibilidades na Espanha, onde por meio da minha prima eu teria uma base de apoio.


Eu poderia ir à marte se fosse necessário, neste momento. Tudo o que importava era dar todas as chances ao Theo.


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